quarta-feira, 29 de julho de 2009

O grão de mostarda


Um amigo do Brasil perguntou-me porque deixei de escrever. Dei-me conta que nos primeiros meses, escrever era uma necessidade pessoal. Hoje, mais ambientado na cultura makhuwa, se torna um desafio expressar o que sinto e vivo após um ano que já estou na missão em Moçambique.
Tenho me questionado: dizer o que para aqueles (as) que estão do outro lado do atlântico? Confesso que a tentação era expressar grandes coisas realizadas, curiosidades culturais ou os mega problemas sociais de miséria, descaso na educação e na saúde pública. Poderia também relatar o número impressionante de batismos, do acompanhamento ao projeto de construção de dez poços este ano, de iniciativas de auto-sustentabilidade, do sínodo africano ou da caminhada sinodal de cinco anos aqui na arquidiocese de Nampula.
Nesta semana quando ouvi o texto de Mateus 13,31-32, comparando o Reino de Deus com o grão de mostarda, achei por bem falar e valorizar os pequenos gestos que silenciosamente fazem o reino acontecer. Acordei-me numa madrugada lembrando-me do chocolate, do feijão preto e do café que recebi de minha mãe no Brasil, dos telefonemas e mensagens dos amigos(as), das refeições com partilhas em nossa casa em Moma, dos momentos ao redor da fogueira para ouvir as novidades do povo, das visitas que chegam a nossa casa diariamente, das crianças que nos rodeiam e nos chamam de brancos com largos sorrisos e olhos brilhantes, do meio litro de sangue doado por uma visita da Itália a uma mulher com anemia profunda devido a situação de fome. Também penso nos pequenos gestos de partilha dos cristãos durante o momento do ofertório. Com danças trazem parte de sua produção de arroz, feijão, milho, amendoim, mandioca, galinhas e ofertam a equipe missionária.
Assim se continuasse poderia relembrar uma infinidade de grãos de mostarda. Eles são tão pequenos e silenciosos que passam por nós despercebidos. De outro lado situa-se na cultura dominante a lógica do mega, do big, do extraordinário, das cifras, da eficácia, do lucro e do espetáculo que produz visibilidade, impacto e barulho. Me pergunto: onde se coloca o valor da pessoa nesta lógica? A criança, o pobre, o velho e o doente onde se situam? Consciente ou inconsciente quando colocamos esta lógica no primeiro plano, passamos facilmente por cima das pessoas e nos esquecemos do grão de mostarda ou da célebre frase de Jesus: “ Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e tudo vos será dado por acréscimo”(Mt6,33).
Voltemos nosso olhar a Jesus que aponta o valor das pequenas coisas que se tornam grandes na lógica evangélica. “O grão de mostarda é a menor de todas as sementes, contudo quando cresce, torna-se uma árvore, vêm os pássaros e se aninham em seus ramos”(Mt13,32). Os preciosos grãos de mostarda são encontrados em espaços de intervalo da informalidade gratuita de nossas agendas lotadas. São nestes momentos aprazíveis de gratuidade que conseguimos ver o pequeno e perdido grão de mostarda que outrora estava sufocado pela tentação da visibilidade de projetos ou planos faraônicos que fazem barulho e produzem impacto.
Hoje, na oração da manhã celebramos o dia de santa Marta, a ativa, preocupada e inquieta hospedeira que descobriu na visita de Jesus que o essencial da vida do discípulo é a escuta da palavra de Deus: “uma coisa é necessária”. O pequeno grão de mostarda estava passando despercebido na atitude de Marta em fazer grandes coisas. “Marta, Marta....” . Em África estou apreendendo com os pequenos que o importante não é fazer grandes coisas, mas pequenos gestos com grande amor. Será que não é paradoxal e esquizofrênica nossas posturas que sufocam os pequenos grãos de mostarda? Repito: “uma coisa é necessária e Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc10, 42).


Pe.Maurício da Silva Jardim
Missionário em Moçambique

domingo, 29 de março de 2009

Morte e Vida



Sete meses se passaram desde que atravessei o atlântico para me lançar na missão “ad gentes” e ancorar no mundo e na cultura africana até então por mim desconhecidos. Desta vez escrevo como aluno do curso de língua e cultura Mackua, oferecido pela arquidiocese de Nampula aos missionários estrangeiros.
Aqui é tempo de fortes chuvas e fome. No último final de semana uma comunidade teve que cancelar batismos de crianças por faltas de condições, noutra fiz 26 batizados sem clima de festa, pois não havia alimentos. No término da missa todos voltaram as suas casas. O normal era ficarem na comunidade para preparar o almoço. Escutei de muitas lideranças que neste tempo o povo alimenta-se somente de folhas de mandioca, esperando a colheita do milho que produz uma vez ao ano. Como carril (carne ou molho) encontra-se rãs, gafanhotos ou outros insetos. Ouvi também que uma mãe desesperada se matou por ver que acabara o alimento para seus filhos.
Como falar de morte, cruz, sofrimento, perdas, dor...sem perder a esperança na vida? Na páscoa de Jesus encontramos a resposta definitiva para este binômio morte e vida. Ele nos garantiu que a morte não tem a última palavra. Aqui predomina no povo cristão a motivação de continuar caminhando e lutando para que haja vida para todos. Alguns aqui me dizem que depois da dor da paixão vem a alegria da ressurreição. Esta dinâmica pascal realmente está misturada paradoxalmente na vida do povo Mackua. A luz do círio acesa em cada vigília pascal rompe definitivamente as forças da morte e da tristeza. Agem e vivem como vitoriosos, mesmo mergulhados na dor de crucificados pelo contexto social de pobreza absoluta.
Uma imagem do cotidiano, do norte de Moçambique, que expressa esta realidade de esperança escondida nas situações de morte, é o capim seco e queimado que guarda silenciosamente, durante meses, a vida que se manifesta depois das primeiras chuvas do mês de dezembro.
Neste quinto domingo da quaresma o evangelho nos recordou as palavras de Jesus: “Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto”(Jo12,24). Quem não apreendeu morrer passa sua vida girando em torno de si mesmo; ilude-se que a felicidade mora ao redor do seu umbigo. Nesta lógica pascal a sabedoria de viver bem se esconde na sabedoria de saber morrer.
Também tenho refletido sobre esta experiência pascal de Jesus acontecendo em minha caminhada de padre missionário “fidei donum”. Quando retomo meu projeto pessoal de vida tenho descoberto que sou convidado pelo mestre a renunciar planos pessoais em vista de um projeto maior. Este processo de morte e perdas se transformam em vida nova na perspectiva do seguimento de Jesus. O caminho do discípulo é na verdade o caminho da semelhança com mestre e Ele nos ensinou que não veio fazer a sua vontade, mas a vontade Daquele que o enviou. Esta é a medida do amor.
Uma boa notícia deste tempo pascal é que não estou mais sozinho em Moma. Voltou para arquidiocese de Nampula o Pe.Luiz Cardalga, padre diocesano da Espanha que atuou mais trinta anos na missão do Brasil. Tem 73 anos e já foi missionário aqui em Moçambique. Também estamos felizes com a chegada do leigo Antônio Daniel da cidade de Esteio, arquidiocese de Porto Alegre. Irá morar conosco em Moma e atuará na pastoral das duas paróquias que atendemos. Continuamos na certeza que o Espírito irá suscitar mais vocações missionárias do Rio Grande do Sul.
A todos e a todas saudações e desejo de que a Páscoa de Jesus, morto e ressuscitado, aconteça em nossas vidas e comunidades.


Pe.Maurício da Silva Jardim
Missionário em Moçambique

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Evangelizar a pé


“Wetta ni Yesu orera” (Andar com Jesus é bom). Embalado por este refrão percorri a pé junto com cinco seminaristas mais de cem quilômetros numa peregrinação que durou quinze dias, visitando quinze comunidades. Saímos de Moma dia trinta de dezembro levando em nossas sacolas as recomendações de Jesus aos seus discípulos. “Nada leveis pelo caminho: nem cajado, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas”(Lc9,3).
Ao longo do caminho fomos contagiados pelo espírito de festa do povo. De uma comunidade a outra um grande número de pessoas nos acompanharam, a maioria jovens que percorriam cinco, dez ou quinze quilômetros, cantando e dançando pelas vias empoeiradas ao som de muito batuque. Mesmo enfrentando um forte calor, nada pode abafar a alegria expressa em cada rosto que encontramos.
A pergunta que mais ouvimos trazia um ar de admiração: “Porque andar a pé se o padre tem carro?” “O que houve com o carro? Está na oficina?”. Tentava dizer algo de minhas motivações pessoais, tais como: - Inspiração de Deus dentro do ano Paulino; ir ao encontro do povo e conhecer melhor a realidade. Partilhei com eles que a idéia nasceu numa ocasião quando passava de carro por aquela estrada e vendo tantas comunidades e pessoas a pé, carregando muitas coisas pesadas em suas cabeças, me perguntei: Porque não fazer a pé este caminho?
Fui pouco a pouco descobrindo que o fato de percorrer a pé estas quinze comunidades trazia consigo um forte conteúdo de Evangelização. No principio não imaginei que seria tão grande a repercussão desta escolha. Entendi ao longo do caminho que a iniciativa primeira era do Espírito de Deus e que cada um interpretaria de maneira diferente. Na comunidade de Maculane uma liderança expressou sua posição: “Não se faz evangelização somente de carro”. Um catequista disse que as longas distâncias não podem ser justificativa para se acomodar e ficar em casa esperando a solução cair do céu.
Aqui no chão africano muitas vezes tenho me perguntado o que é mesmo evangelizar. Sempre ouvi que a missão da Igreja é anunciar, pregar, servir, testemunhar, dialogar e formar. Neste caminho vive a forte experiência de evangelizar pela presença gratuita, com meios pobres e com poucas palavras. “Estar com”, visitar, ouvir, partilhar e celebrar a Eucaristia para um povo que fica mais de um ano sem missa, foi o próprio conteúdo pregação.
Neste caminho até Chalaua predomina um cenário de pobreza social. Ouvimos sempre preocupações sobre a fome, a falta de condições para o estudo da juventude e carência de atendimento médico e medicamentos. Como símbolo de exploração do povo, encontramos na contramão uma média de dez caminhões de Chineses que diariamente carregam toneladas de madeira. Algumas áreas de Moçambique já estão desérticas, fruto do desmatamento.
Um dos pontos fortes desta caminhada foi a visita aos doentes. Acompanhados pela comunidade chegamos à casa de quarenta e seis pessoas enfermas em estado grave, a maioria sem diagnóstico, sem atendimento ou remédios. Por isso, apelam para soluções da cultura e religião tradicional. Buscam ajuda no curandeiro e no advinha que receitam medicamentos de plantas naturais. Grande parte morre sem saber a “causa mortis”. Em algumas situações pensei que seria providente que neste caminho estivesse comigo um médico e uma autoridade política. Na maioria dos casos fiquei sem resposta ou encaminhamento diante desta realidade.
Nestes quinze dias de intensa vivência e convívio nas comunidades também aproveitei para rezar pedindo ao dono da messe que envie mais padres gaúchos, religiosos(as) e leigos(as) para este grande campo de missão. Sei do empenho dos bispos e responsáveis pelo setor missionário da CNBB que tem a tarefa de motivarem as dioceses do Regional Sul III para continuarmos no compromisso com nossa Igreja irmã de Moçambique. Desde o inicio de dezembro, com o retorno do padre Fabiano Dalcin ao Brasil, estou como padre sozinho para atender as duas paróquias com cento e quarenta comunidades.
Concluo com a expressão do papa PauloVI: “quem evangeliza, se evangeliza”. Neste caminho o povo nos evangelizou, pregando o evangelho da partilha, da acolhida, do despojamento, da fé comprometida, da sede de Deus na Eucaristia, da força da comunidade, da resistência no sofrimento e da alegria no Cristo ressuscitado.
Pe.Maurício da Silva Jardim
Missionário em Moçambique